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A Máscara Rubra

Atualizado: 23 de set. de 2018

Sempre fui viciado em vencer..


     Não importava em que, podia ser esportes, videogame, apostas, até mesmo vencer os desafios que eu fazia a mim mesmo, quando achava que algo era realmente impossível de se conseguir realizar.


     A sensação da vitória era incomparável para mim, sentia meu corpo pulsar de uma maneira única, meu coração batia como se o mundo fosse explodir. A adrenalina de não saber se eu iria vencer, ou o prazer de saber que eu tinha superado algo ou alguém, era insubstituível. Como uma droga, que afeta nosso cérebro de forma a nos deixar sentindo-nos recompensados.Isso era vencer pra mim, fazia com que eu me sentisse vivo. E assim como com as drogas viciam, vencer se tornou um vício em minha vida.


    Eu não conseguia mais passar um dia, sem me colocar em uma situação onde vencer fosse o objetivo, e se eu não vencesse era ainda pior, pois a cada derrota eu sabia que merecia ser punido, por isso costumava me mutilar, me ferrar psicologicamente, sabendo que esse era o único jeito para que eu me sentisse digno de continuar buscando a vitória.


     Desde sempre foi assim, desde criança, meu pai me criou dessa forma para ser um vencedor em qualquer coisa que eu participasse, e para não aceitar a derrota, independente do que fosse preciso fazer.


     Eu bem sabia, sabia que vencer me levaria ao meu fim, de alguma forma, ou de outra. A vida porém foi mais original do que eu esperava. Buscando saciar minha sede por vencer, encontrei um hobbie que a gorda herança de meu pai podia sustentar: leilões.


     Leilões eram em sua maioria bem frequentados, com bons adversários, ricos como eu, e determinados a ponto de aumentar milhões em seus lances, apenas para levar uma obra de arte para casa, somente para manter seu ego intacto. Era isso que eu buscava, adversários que realmente quisessem vencer. Naquela noite em específico porém, eu hoje desejava ter perdido.


     Ela estava linda, brilhava mais do que qualquer item exposto, todos lá presentes a queriam, e por isso eu sabia, seria minha. Seus grandes rubis se destacavam ornamentando-a com uma beleza única, a máscara rubra me olhava com seus profundos olhos negros, e foi assim até o fim da noite.


     O leiloeiro então, após já ter leiloado todos os demais itens, começou seu discurso,o qual dizia:


     - Finalmente, chegou a vez dela. Muitos duvidam, mas o real valor desta peça não está em seus belos rubis, mas sim em sua lenda! - De fato, a lenda não me interessava, assim como eu podia ver nos rostos de todos que a desejavam, o que queriam era vencer, porém apenas um a teria, e este seria eu.


     - A lenda da máscara rubra, dizem que carrega uma maldição para seus donos, que todo aquele que a possui, deve carregar o fardo da mais pura insanidade pelo resto de sua vida. - Continuou o leiloeiro, Como eu deseja ter ouvido seu discurso por completo, estava porém ocupado demais saboreando o sentimento da disputa, medindo meus inimigos e objetivando a vitória.


     Deixei meus oponentes iniciarem os lances. Como eram ridículos, eu ria por dentro, e sabia que os verdadeiros rivais, assim como eu, não estavam apostando ainda. Eles gostavam de ver os fracos e pequenos brigando, antes de chegar com seus lances para esmagar os seus sonhos. Então um deles deu o primeiro passo, um árabe, seu nome era Faruk, um estranho velho, vestindo sua tradicional túnica, ele tinha um olhar frio, e uma longa barba negra. Na noite eu não dei atenção, mas hoje eu sei que talvez aquela figura deslocada, fosse a única pessoa que soubesse o real peso da máscara.


     Como era previsto, eu venci e o velho desapareceu. Por algum motivo que desconheço, a máscara perdeu seu valor no momento em que o martelo decidiu o vencedor. Não me lembro mais dos outros competidores, lembro apenas do bom e velho sentimento de vencer, fervia em meus lábios, eu gozava dos minutos seguintes como um lobo que caiu em um galinheiro.


     Ela enfim chegou em minha casa pela manhã do outro dia, minhas comemorações já haviam se encerrado, e apenas uma garota da noite anterior estava na casa além de mim. Seu nome era Alice, e definitivamente, Alice era nova demais para morrer como morreu.


     Alice me acompanhou até a porta na hora de receber a máscara. Ao abrir a caixa de madeira logo botei as mãos nela, sem nem perceber o pequeno pedaço de papiro velho que estava junto da peça. Alice me pediu para experimentá-la, de fato eu não me importava com ela, com o seu valor ou beleza, afinal o único motivo de tê-la comprado foi para vencer o leilão, logo não me pensei duas vezes antes de entregá-la para a garota, que ficou com os olhos brilhantes ao admirar os lindos rubis.


     Ao vestir a máscara, ela pronunciou o que seriam suas últimas doces palavras, ao mesmo tempo em que removia seu roupão:


     - Como pareço, agora que visto seu troféu? - Em sua tentativa de retirar o confortável roupão andando em minha direção, algo assustou Alice, foi quando ela gritou, e correu na direção oposta a mim, correu para enfim escorregar em algum resquício do vinho da noite anterior, e caindo, sua nuca encontrou um dos degraus da grande casa. Ela morreu na hora, com a máscara ainda em seu rosto. Naquele momento, o belo corpo nu parecia agora de outro ser, que dali do chão me media como quem diz:


     “Você é capaz de me vencer?”


     Hoje já sei que a resposta para essa pergunta é não, e de forma sarcástica devo dizer que enfim aprendi a perder, a máscara me ensinou.


     Não chamei a polícia, sei que não fiz nada de errado é verdade, mas certamente não queria que o marido de Alice, soube-se que ela tinha passado a noite comigo, já que após o tempo juntos, ela deixou escapar a profissão de seu cônjuge, militar, mais precisamente um mercenário militar.


     Foi por isso que me decidi por queimar o corpo, colocando-o no grande forno da cozinha, onde não demorou muito para que até os ossos se tornassem pó. Óbviamente removi a máscara do corpo, já que naquele momento ainda não havia me dado conta da obscura ligação entre ela e o fatal fim de Alice.


     Meu corpo coberto de seu sangue, assim como a sala onde ocorreu o acidente, fazia com que eu tremesse, resolvi lavar tudo o mais rápido possível, e por fim tomar um banho para retirar as últimas evidências de mim. Foi então que o primeiro evento aconteceu.


     De cabeça erguida enquanto a água escorria pelo meu rosto, removendo aos poucos o sangue de Alice que agora pintava os azulejos do banheiro, senti um par de mãos tocar o meu peito, e pelas costas um quente corpo a me abraçar. Com a visão ainda borrada pela água em meus olhos, não fui capaz de ter certeza, mas quando me virei assustado para tentar ver, a silhueta parecia muito com o corpo de uma mulher, porém ao secar meus olhos, seja lá o que realmente fosse, sumiu.


     Saindo do banho, encontrei a máscara sobre minha cama, mesmo sem lembrar de tê-la posto ali. Novamente parecia me encarar, e ainda atordoado com os fatos, e moralmente destruído pelos meus atos, resolvi dormir, talvez a manhã viesse com alguma boa nova, quem sabe? E então ao lado da rubra máscara adormeci.


     Não me lembro ao certo o que sonhei, lembro apenas que ao acordar ainda parecia sonhar, já que quando abri os olhos encontrei uma mulher de costas para mim, bastou um toque de minha mão para que ela se virasse, sorrindo lindamente, era Alice. Ela me encarou, como se pudesse ver a minha alma, e então como em um dejavú perguntou:


     “Como pareço, agora que visto seu troféu?”


     Ao fim da sua última palavra, como em uma visão direta do pior dos pesadelos, seu rosto começou a corar, sem desfazer o sorriso, bolhas começaram a se formar por toda sua hidratada pele, enquanto seu lindo cabelo loiro pegava fogo, por fim, foi a vez dos olhos, que derreteram como se fossem gelo, rapidamente toda sua pele já estava queimada, negra como carvão, e como carvão também, o vento soprou as cinzas que um dia formaram o rosto de Alice. Ao fim daquela horrível combustão espontânea, o crânio começou a se revelar, ou pelo menos isso seria o “normal” a acontecer, já que no lugar do branco de seus ossos, as primeiras partes reveladas eram rubras como sangue, por fim já não era surpresa, que ao invés do crânio, a rubra máscara se fazia presente.


     Num primeiro instante me senti preso a cama, mas após a máscara se revelar, com um grande pulo enfim consegui me desprender dos cobertores e ficar de pé, agora porém ao olhar para os lençóis não existia corpo, não existia cinzas, não existia Alice. Apenas restava a máscara, que quando adormeci, repousava naquele mesmo lugar ao meu lado, novamente, ela parecia me encarar e perguntar:


     “Você é capaz de me vencer?”


     Apertei os olhos, e novamente apenas a máscara estava sobre a cama, comecei a pensar se a minha mente estava me pregando uma peça, o trauma de encobrir uma morte me tomava agora, a raiva de minhas próprias ações estava me corroendo, me enlouqueciam. Quanto mais pensava, mais parecia que a máscara chamava minha atenção. Fui até ela, e a segurei em minhas mãos, observando como quem analisa uma doença, lembrando do sonho que acabara de ter. Sem pensar muito, com gosto de remorso em minha boca, arremessei a peça com seus rubis pela janela.


     Após me vestir, resolvi tomar meu café da manhã, o que estava feito, estava feito.

     O café da manhã dos vencedores, pensei enquanto me servia, era o que eu falava pra mim mesmo todas as manhãs, e naquela, mesmo com o corrido, não foi diferente. Perto do fim do café porém, quando finalmente o pensamento já estava longe, a campainha tocou, quebrando meus pensamentos e ecoando em minha mente. Era um carteiro, trazia uma encomenda para mim, uma caixa.


     Após assinar os papéis e receber o pacote, comecei confuso a imaginar o que poderia ser, era cedo demais para os correios estarem entregando, a não ser é claro que fosse algo importante demais para esperar, com algum tipo de entrega premium.


    A velha caixa porém era tudo, menos um pacote com boa aparência, e sem mais paciência para deduzir, enfim a abri. Para o pavor de minha pobre lucidez, era ela, linda como no momento que a vi pela primeira vez, ostentando seus brilhosos rubis, a máscara rubra novamente me encarava. Confesso que no momento que abri a caixa, soltei um baixo grito de pavor, de espanto, não era possível que aquilo estivesse acontecendo, era alguma piada? Alguém sabia de Alice e estava tentando me intimidar? Eu não conseguia encontrar explicação.


     Diferente porém da primeira vez que a recebi, agora eu estava mais atento aos detalhes, e não deixei que o pequeno pedaço de papiro velho passasse despercebido do meu olhar novamente, nele dizia como um aviso:


“Para aqueles que a possuem, para aqueles que ousam coloca-lá, sua sanidade não poderá suportar, o que ela os fará enxergar”.


     Os pelos de minha nuca rapidamente se arrepiaram ao ler a frase, claramente existiam jogos que eu não queria jogar, e aquele era um deles. Olhei novamente para a máscara na minha frente, dentro da caixa. Foi quando resolvi então colocá-la, não sei por que esta estúpida ideia passou pela minha cabeça, talvez por que queria provar para mim mesmo, que tudo aquilo era uma grande bobagem. Me arrependo novamente desta ideia, já que no instante em que alinhei meus olhos com os respectivos espaços da máscara, o que ví foi pior do que eu poderia imaginar, era meu pai.


     Nunca tive afeto pelo meu velho. Ele era muito ausente, e no tempo em que estava por perto, costumeiramente gostava de me ensinar o quão importante era o valor da vitória, ele fazia isso me agredindo a cada derrota, o problema é que dificilmente eu o vencia. Enquanto me castigava, ele sempre mantinha o mesmo discurso:


     “Você deve entender o valor de cada vitória, e o único jeito de dar valor para isso, é entendendo o peso de cada derrota”.


     Ele estava ali, em minha frente, disse Olá e sorriu, mas diferente de quando estava vivo, seus dentes agora estavam podres, era de fato o sorriso de um homem enterrado a vinte anos, pude porém ainda assim identificar o seu motivo, aquele sádico sorriso de quando ele estava prestes a me punir por uma derrota.


     Assustado, deixando a rubra máscara cair, corri. A morte de meu pai foi um alívio em minha vida, mas ainda assim ele me deixou a pior das heranças, o vício em vencer.


    Corri até meu quarto, onde tranquei as portas em uma tentativa frustrada de manter a loucura do lado de fora, caminhei de costas até a cama, onde sentei, finalmente repousando. Foi quando através do tato de minha mão, pude sentir algo que não fosse o macio dos lençóis. Assustado, meu reflexo fez com que eu olhasse rapidamente para o que minha mão tocava.


    Pulando da cama e me encurralando entre ela e a parede, repousava ali novamente a maldita máscara rubra. Minha respiração era tensa, foi quando para piorar, algo chegou até a porta, e batendo com força em suas grossas madeiras, alguém a tentava arrombar. Eu podia ouvir meus batimentos cardíacos, como se meu coração fosse pular do meu peito, enquanto mais violentas as batidas pareciam ficar, até finalmente, sem motivo algum, cessarem.


    Covardemente me mantive parado por alguns minutos, quando finalmente deixei de tremer, e fui capaz de novamente dar alguns passos dirigindo-me até a porta, e para minha surpresa quando a abri, não havia ninguém do outro lado.


    Decidido a contar a verdade, peguei meu celular e liguei para a polícia, com pressa e atordoado, expliquei a situação sem dar tempo de resposta, e no fim de meu longo discurso de loucura, ela finalmente falou comigo:


    “Vai desistir do nosso jogo?”


Era a voz de Alice, mas não era ela, eu sabia que não era, era a máscara falando comigo, eu podia sentir. Virei novamente pra cama e lá estava ela, me encarando da mesma forma, como quem ainda diz:


     “Você é capaz de me vencer?”


     O que você quer comigo? - Perguntei no telefone, mas a resposta que tive foi apenas o cair da ligação.


    Decidido a pôr fim naquilo tudo, peguei a máscara e a levei para a cozinha, onde a coloquei no mesmo forno onde as cinzas de alice ainda repousavam. A máscara porém não queimou, o fogo não fez nada com seja lá qual fosse o maldito material do qual ela era feita, e como em um deboche, o infernal sorriso dos lábios de rubis da rubra máscara brilhava para mim.


    Abri o forno e a peguei, gritando não apenas pela dor da queimadura que causava em minhas mãos por segurá-la fervendo, mas também de raiva, enquanto sem sucesso pensava em outra maneira de me livrar da peça.


    Não sabendo mais o que fazer, peguei a velha caixa onde meu troféu foi enviado, e a enterrei em meu quintal, levei duas horas cavando o mais fundo que pude, cada pessoa que passava em frente a minha casa, olhava para mim como quem olha para um louco, e de fato, eu acredito que eu realmente parecia com um.


    Esgotado, apenas após fechar o buraco, me sentei ao chão, totalmente tomado pela terra, minhas roupas estavam marrom. Foi quando ouvi novamente uma voz me fazendo uma pergunta:


    “O senhor é o dono dessa casa?”


    Ao me virar, de pé parado em minha frente, estava um entregador, segurando uma velha caixa de péssima aparência. Podia não ser, mas eu jurava que era o mesmo entregador da outra vez, como em uma péssima piada de mal gosto, que me fez começar a rir, e assim rindo sem parar, me levantei segurando a pá, que em menos de cinco minutos se tornou a arma que pôs fim a vida do pobre entregador.


    Puxando-o para dentro, junto da caixa, deixando um longo rastro de sangue pelo caminho, pude ver uma de minhas vizinhas entrando em desespero para dentro de sua casa. Eu não poderia fazer nada, não existia prova maior do que o sangue daquele homem por toda minha roupa.


     Já dentro de casa, tranquei as portas para ganhar algum tempo, tomado pela raiva peguei a caixa e a arremessei contra a parede, fazendo com que o velho pacote se despedaçasse. Para minha surpresa, de maneira irônica, o que a caixa trazia e agora estava no chão, não era a máscara rubra, e sim uma corda, uma grossa corda que em uma de suas pontas amarradas se formava uma fôrca.


    Caindo de joelhos ao lado do corpo do entregador e em meio aos pedaços da caixa, encarei a corda por alguns segundos, meu rosto em lágrimas era a prova da minha derrota, perdi para a loucura, minha mente já insana aceitou isso, a punição estava em minha frente, e agora, neste momento, enquanto escrevo estas palavras, me encara presa ao teto de meu quarto, onde meu corpo provavelmente já removido, pendeu aceitando a vitória da insanidade, causada pela rubra máscara que da cama novamente me encara.

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